A Armadilha do Progresso
"Numa frase lapidar, Eduardo Lourenço escreveu que a “construir a Europa por irresistível pressão das forças económicas e uma lógica que é hoje planetária, como sonâmbulos, não é projecto que entusiasme ninguém.” (Ver A Europa Desencantada, 3ª ed., Gradiva, 2011, p. 240). É bem verdade! E não é só a integração europeia que se ressente da hegemonia do homo economicus, gerando o desencantamento do cidadão face à Europa. A actual lógica capitalista, baseada numa competição extremada, está a levar ao esgotamento qualquer ideia genuína de progresso — o “movimentismo” é a sua última versão, cada vez mais falseada e desumanizada. Alimenta uma engrenagem de insustentabilidade ao induzir, por exemplo, uma ecologia alterada e uma demografia que corrói o equilíbrio do modelo social europeu / Estado social. Paradoxalmente, o que deveria ser a sua antítese, a ideologia social-liberal / libertária de esquerda, acentua essas últimas tendências, pelos estilos de vida fragmentários que promove. A conjugação de ambas levanta problemas complexos no longo prazo, embora possa gerar, especialmente ao nível das elites, vantagens e oportunidades de prosperar à custa do todo social. Não é surpreendente que a Europa, parafraseando Eduardo Lourenço, esteja a ultrapassar o limiar de um tempo não europeu e a tornar-se progressivamente irrelevante.
A ideologia do progresso, na versão social-liberal / libertária, de esquerda, vê-se, a si própria, como genuinamente progressista. Tem normalmente escapado à crítica do progresso. Não há razão substantiva para isso. Sofre de similares problemas aos já apontados às outras facetas da ideologia do progresso. A sua crença não assenta nas possibilidades da ciência e tecnologia, nem do crescimento da economia, mas nas possibilidades infinitas e redentoras de um progresso social. Acredita na “destruição criadora” da transformação social, na criação permanente de novos valores superiores aos antigos. Cultiva a sua própria forma de “movimentismo”. Nutre-se do pré-conceito acrítico de que o novo supera automaticamente o antigo, de que isso é evolução, é progresso. O europeu / ocidental já adquiriu uma saudável dose de cepticismo e de espírito crítico sobre a ideologia do progresso no campo científico-tecnológico (e também no económico). As tragédias das duas guerras mundiais e os problemas ecológicos levantados pela economia capitalista foram um necessário choque de realidade — e um grito da consciência crítica e ética. Não adquiriu ainda essa consciência face à ideologia progressista no campo social e ao seu culto ‘movimentista‘— e experimentalista — da transformação social permanente. É o seu “admirável mundo novo”. Assenta na desconstrução dos valores estabelecidos inspirada em Jacques Derrida e na resistência anti-poder de Michel Foucault. Ironicamente, a analogia com as ideias liberais / (neo)liberais de direita, de um progresso pela “destruição criadora”, é grande. As teses ecoam as de Schumpeter. Estas vêm a inovação / competitividade / empreendedorismo com um motor da transformação. As externalidades sociais e ambientais não são um problema seu. Os sociais-liberais, ou libertários de esquerda, sofrem de similar visão simplista. O pré-conceito progressista impede de ver como a transformação social permanente, com a difusão de estilos de vida hedonistas e egocêntricos, fragmentam e atomizam a sociedade. A insustentabilidade demográfica, gerada pelo homo economicus obcecado pela competição, é acentuada pela instabilidade da transformação social permanente. O modelo social europeu / Estado social é um dano colateral de ambas as ideologias." (artigo de José Pedro Fernandes no jornal Público em Abril 2016)
https://www.wook.pt/livro/o-regresso-da-geopolitica-jose-pedro-teixeira-fernandes/19279146